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Há algum tempo eu trabalhava numa livraria e notei que um cliente entrava, andava a loja toda, não falava com ninguém e, de repente, sumia. Seu comportamento mexeu comigo e passei a observá-lo a partir daí. Todo dia, ele entrava na livraria, circulava e desaparecia. Saía repentinamente. Confesso que passei a "escoltá-lo", como diz a gíria policial. Após algum tempo notei que ele estava "marcando" os livros que queria. Até aí, "no problem!" Mas um dia eu o flagrei: Num movimento brusco, ele pôs o livro Conceitos Elementares do Materialismo Histórico, de Martha Harnecker, embaixo da jaqueta us-top bordada com Jimi Hendrix de roqueiro e evaporou!
Confesso, também, que odeio ladrões, e me prometi "amassar o cano" dele ou "escrachá-lo", como diz o Vagner Montes. Dito e feito, no dia seguinte, mesma hora, mesma jaqueta, mesma rapidez, pegou o livro Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, meteu embaixo da jaqueta e partiu em direção à porta, mas a arapuca estava armada: Eu, Niltim e Fabrízio emparedamos na saída; quando ele notou, era tarde. Pedi-lhe o livro e perguntei se queria apanhar ali mesmo ou lá no depósito; ele rodou nos calcanhares, pôs o livro sobre o balcão e perguntou:"Quê livro?!" e expliquei-lhe que se voltasse à livraria, iria entrar no cacete lá no depósito.
Passaram-se vários dias sem que ele aparecesse; então concluí que tinha funcionado meu esquema. Como gosto muito de artesanato, sempre ia passear na Feira da Praça General Osório, em Ipanema, na hora do almoço, gosto de escolher minhas peças bem detalhadamente e com o devido cuidado, para não ter dissabores a posteriori. Por isso, demorava muito tanto na feira como nas barracas onde parava. E foi num momento assim que visualizei uma lona estirada no chão cheia de livros, tendo ao lado, sentado numa cadeira de vime, nada mais nada menos, que aquele "nobre ladrão".
Aproximei-me bem devagar, na verdade para que ele notasse a minha presença. Ele é branco, magro, alto, usa cabelo estilo Robin Hood, e se levantou dizendo "assim não vale!", "Calma", respondi-lhe, "Eu só quero os que você roubou lá no meu trabalho." Aí ele rodou nos calcanhares do mesmo jeito que fizera lá na loja e eu não agüentei e caí na gargalhada, exclamando "Como você é ridículo, rouba de um lado da rua e vai vender no outro!" Mas aí vi o livro CANTO BRASILEIRO, do Paulo Sérgio Pinheiro, e perguntei-lhe aonde roubara este livro; "Como eu vou saber..." "Então eu vou levá-lo por pagamento dos que você já roubou na loja!" Peguei o livro e fui.
Daí em diante, voltei mais assiduamente à feira, e passei a não hostilizá-lo mais, e em compensação ele não roubou mais lá onde eu trabalhava, tornei-me seu "cliente", e, passadas algumas décadas, lhe perguntei: J, você ainda rouba livros? "P... Cabral!"...
Hoje ele é um conceituado professor de história com diversos livros editados na área e, acima de tudo, meu amigo. Eis acima o livro que eu expropriei dele.
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Sei que sou assim: Desde o princípio até ao fim, só restos de mim.