quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

DO POBRE ARLEQUIM * Antonio Cabral Filho - Rj

Nasci ao sopé das montanhas,
Lá onde terminam os bosques
E as florestas se adensam.

Bem cedo aprendi a brincar
Com os habitantes desse mundo
Onde reinam Sacis e Iaras.

Ainda menino fui pras cidades
Sem seio de mãe nem ombro de pai,
Órfão de noite e de dia.

Segui sempre o senfim dos caminhos
E a poeira das estradas
Tingiu de vermelho os meus sonhos.

E o ronco do motor dos caminhões
É que ninou a soneca do menino
À sombra dos arbustos solidários.

Meu prato requentado e rápido
Eu soube sempre o seu sabor de sal
Temperado de relento e sol.


Na cidade sou um peixe fora d’agua
E vez por outra ponho-me frente aos bares
Perscrutando por que essa gente bebe tanto.

O meu amor não sabe o pranto
Tão fartas comigo foram as mulheres francas
Em darem-se inteiras e detalhes tantos.


Não prometo ser algum dia um gentleman,
Mas eu não mijo calçada a fora
Após uns chopes com steinhägen.
*
Do Pobre Arlequim, integra a ANTOLOGIA POÉTICA Vol2 - UFF/Eduff 1996.
***

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

História de Lurdinhas * Antonio Cabral Filho


     Não sei por que razão a "máquina" de Tenório Cavalcante chamava-se Lurdinha. Sei, apenas, que se tratava de uma metralhadora de marca Ina e com ela ele "escreveu" sua história, cobrindo de sangue a Baixada Fluminense.
     A minha Máquina, também, chama-se Lurdinha, mas tem as "mãos limpas" e por uma razão muito justa. É que com ela eu escrevo a minha história e derramo o meu próprio sangue, só que em sentido figurado, é claro.
     É que quando cansei-me da rotatividade no mercado de trabalho, uma das primeiras coisas que fiz foi vender livro nas portas das faculdades do Rio de Janeiro. Isso rendeu-me muita amizade, uma das quais com uma estudante de geografia da Universidade Federal Fluminense - UFF, que levava sua Olivetti portátil para o campus, visando preparar seus trabalhos urgentemente e entregá-los aos professores.
     Como era cansativo carregá-la o tempo todo, ela ficava comigo no saguão do Instituto de Matemática, aonde Lurdinha e seus colegas de turmas se reuniam para preparar os trabalhos.
     O tempo passou de fininho e Lurdinha concluiu geografia, ingressou em pedagogia e a máquina foi ficando comigo. E, graças a isso, acabei "datilografo" ( a quatro dedos, é verdade), oficial da galera, o que contribuiu para gerar alguns dividendos elaborando trabalhos para muita gente.
     Sem ao menos dar por mim, o ano se passava e lá vinha outra leva de calouros com aquela festança, a cara de espanto dos novatos, os trotes, um choro aqui, um namoro ali e o ombro amigo do velho livreiro para guardar os segredinhos da meninada.
     Um dia Lurdinha chegou com um monte de livros e pôs do meu lado...
- É teu!
- Mas... Gaguejei, e, ao notar que eram seus livros de consulta, todos comprados comigo, notei que ela dobrava uma jaqueta jeans, que há um monte de meses não saía da minha cadeira.
- Vai, finalmente, dar uma lavada na pobre, né! Ironizei-a.
- Não! Estou indo para a UFMG; vou morar em frente à Pampulha; até já dei uma volta na lagoa. Adiantou ela, irradiando felicidade.
- E a faculdade? Interroguei, assustado.
- Aqui o diploma! Mostrou-o sorridente, enquanto ajustava a mochila.
     Lurdinha é clarinha, de pele rosada, tem cabelos castanhos lisos, que ela corta à chanel, o que realça seu rosto redondo; seus olhos são esverdeados e mudam de côr ao mínimo reflexo da luz, tem estatura mediana e um corpo que nós, os machos, chamamos de "miñon".
- Tá-qui a máquina! E coloquei-a ao lado a mochila, já cheia de tralhas amarradas por fora.
- Tem ficha de telefone? Viajo hoje à noite  e até lá, quero me despedir de alguns colegas. E continuou falando um monte de coisas, enquanto eu amarrava uma linha com quinze centímetros mais ou menos na única ficha que eu tinha em um palito para que ela pudesse ligar sem perder a ficha.
- P....!! É claro que ela disse uma coisa que não cabe aqui.
- Você é um guerrilheiro! 
- Que isso, companheira! Beijou-me, abraçou-me, e foi saindo com a mochila na mão.
- E a máquina?! E ela voltou-se e disse:
- Eu a trouxe pra cá para bater trabalhos meus e defender um "qualquer" com os trabalhos dos colegas, mas ela virou um "ganha-pão" pra nós dois. Eu não tenho condições de tirá-la de você. Disse isso e virou-se com sua rodadinha característica, deixando-me sentado com a máquina no colo entre as mãos.
- Não é justo que ela se chame Lurdinha?!