Em 1974 fui trabalhar na Livraria Entrelivros, localizada na Avenida Copacabana, 605, entre a Praça Serzedelo Correia, mais conhecida como Praça dos Paraíbas por estar quase sempre cheia de nordestinos, e a Rua Figueiredo Magalhães.
A minha função era de auxiliar de serviços gerais e nas horas vagas eu aproveitava para resgatar um pouco da mais-valia sugada pelo patrão, Seu Caramuru. Era quando eu mergulhava na leitura, lia de tudo, e todo livro que caísse nas minhas graças, era meu. Era o pago pelos pacotes pesados que eu carregava, quase todo dia, do Largo do Machado a Copacabana e a recompensa pelo salário de fome que ele pagava a todos os seus funcionários. E, como dizíamos, a vingança do peão é roubar o patrão.
O gerente era o Seu Abel, um velhote metido a garotão, de cabelos castanhos lisos sempre aparados na nuca, bem falante, exímio conhecedor de livros e expert em qualquer assunto.
Era raro o dia em que não se formava uma roda nos fundos da livraria com estudantes e professores universitários em torno do Seu Abel, quando debatiam filosofia, principalmente marxismo, e, infalivelmente, o existencialismo de Sartre, que ele chamava de filosofia dos pequenos burgueses, muito em voga na época.
Mas pra mim, que não tava nem aí, todos eles não passavam de um bando de comunistas, desocupados, maconheiros do calçadão da Avenida Atlântica. É que me causava ojeriza aqueles homens cabeludos, todos esfarrapados, mulheres descalças ou de chinelos baratos, sem sutiens e seios à vistas, com suvacos peludos e fedorentos, todo mundo com aqueles papos filosóficos, defendendo o proletariado, falando em socialismo, libertação da mulher, luta contra o imperialismo etc.
- Quê diabo é isso?! Perguntava-me eu, sempre passando o pano no chão, fingindo estar ocupado, como dizia o Sr. Abel, para não dar mole pro "ome" pegar alguém parado, mas assuntando pelos cantos qual era o papo deles.
De vez em quando Seu Abel pedia mais uma garrafa de água, mais café e frisava no esvaziamento dos cinzeiros.
- Êh bicho burro é fumante, né Seu Abel? E punha a mão na boca, fingindo ter cometido uma gafe, só pra zombar daqueles finórios, mas a salvação é que ele sempre concordava comigo.
Como aliás fazia quase sempre; só uma vez o Seu Abel deixou-me engasgado, sem a resposta devida. É que na minha cabeça de vinte anos, vindo da roça e filho de família conservadora, não se encaixava a ideia de mulher nova com homem velho. E o Seu Abel era pra mim um maníaco, um maníaco que vivia atrás das meninas, pagando a elas para dar uma lambidinha em suas pererecas. Era assim que eu via o Seu Abel e pronto. Só que a minha inquietude com aquilo era muito grande, porque ele gastava dinheiro com aquelas putinhas, putinhas de merda e algumas até abusavam dele, faziam escândalos, chamavam-no de chupador, velho brocha, que iam denunciá-lo ao Juizado de Menores e faziam isso nos piores momentos, às vezes nos bares onde ele frequentava, às vezes na loja, muitas vezes na frente dos fregueses, tudo para arrancar-lhe dinheiro, o que invariavelmente conseguiam e saiam sorridentes, avisando: Eu volto, hein!!
Um dia perguntei-lhe por quê se envolvia com aquele tipo de meninas, visivelmente sem caracter, marginalizadas, e disse-lhe que se ainda tinha tesão, mesmo com toda sua idade, então que arrumasse uma mulher e sossegasse o facho. Aí ele respondeu-me que "Pra burro velho, o remédio é capim novo!"
- Não é isso que vocês dizem lá em Minas? Ironizou-me com seu cinismo característico, mas fiz-lhe ver que o capim novo, pra burro velho ou não, dá é uma bruta caganeira seguida de franqueza extrema, que pode até matar o animal. Seu Abel fechou a cara, calou a boca e passou meses sem falar comigo direito, sem dar-me atenção, além do estritamente profissional. Isso durou até o dia em que chegou pra mim e disse que eu estava "correndo perigo ", que era para eu cortar o romance com a fulaninha com quem eu trepava todo dia depois de fechar a livraria, porque o marido dela era da Invernada de Olaria, um dos "Homens de Ouro", e chegara em casa enquanto ela estava comigo e a babá, temerosa, dedurou-a.
- Como é que o Senhor sabe disso?! Interroguei-o, quase gritando, enquanto ele, rindo, imitava o roqueiro da época: Aqui fala Big Brother !!! E, pondo o braço sobre o meu ombro direito, abraçou-me convidando para tomarmos uma Black Prince na esquina da Figueiredo com Dias ferreira, enquanto expunha-me o que estava ocorrendo.
- Sabe Totó, é que eu segui o seu conselho, e estou comendo a babá, uma mulher madura! 
- Filho da... puta que o pariu! Que velho safado! Gritei rua a fora em nosso trajeto rumo ao bar.
Lá, durante horas, tomando cerveja preta e fumando muito, Seu Abel promoveu-me a vendedor e demitiu o vendedor antigo, por um motivo muito bobo, na minha opinião.
- Já pensou Totó, A Luta Corporal, na seção de artes marciais, junto com kung-fu?! Totó, é o fim!! Desabafava Seu Abel, explicando-me que Ferreira Gullar, autor do livro em questão, era de suma importância na poesia brasileira, que ele havia liderado o neo-concretismo na década de sessenta e posto os paulistas Campos&Pignatari pra correr ( palavras dele hein!) daqui do Rio e que era o poeta contemporâneo que radicalizava a veia poética do modernismo de Mário e Oswald, ambos de Andrade,  com o toque anárquico do último e o aporte intelectual do primeiro, e arrematava metendo pau na ditadura, por ter feito seu poeta refugiar-se no exílio, enquanto eu recitava Zé Limeira, para abafar a fúria esquerdista do meu amigo e divertir a plateia etílica.
Dias depois Seu Abel chegou ao trabalho todo arrumadinho, e eu e a caixa Raimundinha aproveitamos pra pegar no pé dele:
- Vai fazer exame de fezes Seu Abel? Perguntamos quase uníssonos. Seu Abe, como bom cobra-criada na malandragem, fitou-nos com o branco dos olhos, bem lá do alto do seu sorriso de lagarto, enquanto limpava os óculos e não disse uma palavra, com o que eu e Raimundinha amarramos nosso bode e fomos cuidar dos nossos afazeres.
Seu Abel saiu avisando que ia visitar um conhecido lá pras bandas de Bonsucesso. Logo depois chegou uma carga de livros pra mim e um Paraíba Chupassangue descarregarmos sozinhos, conquanto a caixa e o motorista sumiam nos becos de Copa.Depois de tudo arrumadinho nos fundos da livraria, sem a caixa nem o motorista, eu e o Paraíba Morcego  tivemos que fechar a loja para irmos comer alguma coisa. Na volta, ele foi conferir as notas e eu, tomar conta do estabelecimento.
O dia foi-se e nada do Seu Abel nem da Raimundinha com o motorista.
- Esses putos foram tirar o atraso! Resmungava o Paraíba, cheio de dor-de-corno, porque a caixa não "dava" pra ele.
- É! Respondia eu, o motorista não é baton, mas tá nas bocas. Completei com um pouco de desprezo, mas procurando aliviar o ego do pobre, que fazia de tudo pra comer a Raimundinha, sem perceber que ela só queria quem tinha carro.
A noite chegou, sem gerente nem caixa nem motorista, com o paraíba falando sozinho e andando a loja toda sem parar. A fome começava a dar sinais. Meus planos noturnos poderiam fazer água. Se a mulher do tira da Invernada de Olaria aparecesse e eu não pudesse fudê-la sobre o monte de livros, babau! Mas às vinte e uma horas chegaram os dois safados, quer dizer, a caixa e o motorista. Seu Abel nada! O motorista foi direto para a caminhonete e chamou o seu Paraíba, que saiu correndo. A Raimundinha entrou loja adentro cantando um samba do Miltinho que tocava nos intervalos das seções de cinema, trazendo numa mão dois copos duplos de milk-shake e na outra uma bolsa de compras.
- Totó! Eu trouxe um milk-shake pra você!! O Seu Abel não chegou não, né?! Falou tudo de uma vez, quase gritando, toda radiante, enquanto jogava tudo sobre a mesa do caixa.
- Não, Seu Abel não chegou ainda, mas correu tudo bem aqui; o dinheiro das vendas está embaixo da gaveta, junto com as notas e a despesa do almoço. Informei logo tudo de uma vez, destampando minha guloseima.
- Ah, Totó, que dia !! Exclamou Raimundinha se espreguiçando. Eu trepei tanto, mas tanto, tanto...
- Tá na cara! Disse, demonstrando mais preocupação com a iguaria do que com a fudelância dela, com sua mania de contar-me em detalhes os seus vôos amorosos. E chamou-me para ver os presentes que ganhara do motorista: Um vestido tubinho, dez calçinhas de lingerie de diversas cores, perfumes de diversas marcas e uma sandália de salto tão alto que eu fiquei me perguntando como alguém se equilibraria sobre aquilo.
- Essas cearenses... Pensei cá com meus botões.
Já eram quase dez horas da noite e nada do Seu Abel; Raimundinha queria saber se a "minha amada" tinha aparecido e eu lhe disse que "até agora não". 
À meia noite fecharíamos a livraria, e eu ia dormir no meu colchonete sobre livros, lá nos fundos da loja, depois de jantar no mesmo bar de sempre, tomando uma malzibier como isca para o sono e despedir-me da turma da mesma esquina de todo dia.
Foi o que fiz. No dia seguinte, pela manhã, fui tomar café e comprar jornal. Antes, fazia um apanhado de todos, através das manchetes, para adquirir aqueles que trouxessem mais variedades, sem negligenciar o JB do Seu Abel. Ao chegar na banca, notei os olhares voltados para mim, e, ao cumprimentar os presentes, constatei certa preocupação nas respostas, no modo como perguntavam se estava tudo bem, no que Seu Manoel, o jornaleiro, chamou-me para dentro da banca, mostrando a capa da Luta Democrática, que estampava um casal sobre uma cama seminus. Era o Seu Abel e a "minha amada". 
Na hora eu fiquei totalmente aéreo, mas logo lembrei do aviso do meu gerente:"Você corre perigo!" Comprei a Última Hora e a Luta Democrática e fui correndo pra livraria. Como não tinha chegado ninguém, fiz um bilhete, deixei as chaves com o porteiro e fui para o Largo do Machado, onde era o escritório da empresa, pedi contas explicando a situação, deixei os jornais com o advogado Dr. Raimundo e às dez horas da manhã eu tomava café na Rodoviária Novo Rio, com a passagem comprada para deixar a cidade. O nervosismo era tanto que o café quase me engasgava, mas doze horas depois eu assistia ao noticiário sobre a Invernada de Olaria a mil e duzentos quilômetros do Rio de Janeiro, me perguntando: Será que eu me livrei desse rabo de foguete?
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